segunda-feira, 4 de março de 2013

Texto de António Mariano

Na manhã do «dia inicial inteiro e limpo», então com quinze anos, fui até ao Seminário de Almada dedicar-me a uma das minhas actividades favoritas: «dar uns toques» numas bolas de basquete, enquanto espreitava a saída da bela fragata do meu pai rumo a Itália. Surpreendido, assisti a algumas manobras para fundear ao largo, de frente para a Praça do Comércio. E por ali, imóvel, ficou. Naquela hora não percebi que estava a presenciar o momento mais importante das nossas gerações de portugueses. Desisti de tentar perceber e regressei a casa. Passada a incerteza inicial quanto ao que realmente se passava, escutados os comunicados e canções da rádio, uma alegria natural invadiu-nos a todos e viemos para as ruas festejar a liberdade. Ficavam para trás silêncios e sussurros inesperados e muitos dos tabus que por cá vagueavam, pesados. O meu pai, que nunca chegou a conhecer a Itália, contou-nos depois como a fragata quase podia ter deitado tudo a perder se tivesse varrido a ferro e fogo a nossa baixa pombalina, e todo aquele dia sem mácula tivesse acabado diferente. Mas um punhado de marinheiros decidiu não entrar em confronto com os seus irmãos, um punhado de homens valentes liderados por Salgueiro Maia. Naquele dia e seguintes, aprendi o valor supremo da liberdade, o direito à indignação que a conquistou e como um, vários, imensos grupos de mulheres e homens, conseguiram tomar nas mãos o rumo das suas vidas, nas cidades e nos campos, nas fábricas, nas minas, por todo o lado.

Meia década depois mergulhei no mundo da estiva e vivi toda a precariedade imposta pelas centenárias famílias de senhores feudais que dominavam os portos. Os esquemas humilhantes, de braço no ar, à espera do jeito do padrinho para conquistar o ganha-pão diário já estavam mitigados, mas a precariedade ainda era rainha. Meio ano passado, deu-se a nossa pequena grande revolução. Ganhámos estabilidade, segurança para constituir família, escolher os espaços de intimidade, almoçar nos mesmos restaurantes dos patrões. Porque nascemos no mesmo mundo e todos temos direito a usufruir dele. Decorreu uma década até que — no tempo do governo daquele que agora faz de Presidente — as condições laborais no mundo da estiva se começaram a degradar. Passados tão poucos anos de alguma estabilidade queriam fazer-nos regressar ao horror da incerteza. Queriam comprar os pais com promessas para que deixassem cair os filhos no passado de miséria de que tínhamos a memória bem fresca. Alguns «sindicalistas» aceitaram vender os filhos porque, diziam, «eles também vão desenrascar-se». Alguns de nós gritámos basta e cometemos um enorme crime. O crime de lutar contra as tendências, contra a fatalidade. Impusemos a dignidade, a segurança, acordámos regras sensatas, criámos condições para que filhos de professores, de militares, de desempregados, de estivadores — cerca de duzentos jovens — tivessem sido admitidos para substituir os mais velhos que iam descansar de uma vida dura. Nos últimos meses assistimos ao ajuste de contas dos mesmos senhores feudais com a nossa história recente. Perdemos uma primeira batalha, a da prepotência, da calúnia e da corrupção. Mas a guerra ainda não acabou porque os estivadores nunca desistem de lutar.

Ando e continuarei a andar nas ruas com todos os portugueses que protestam contra esta forma de governação excelliana, comandada pela alta finança. Recuso o pagamento dos desfalques do casino em que alguns tornaram o mundo, porque apenas nos estão a obrigar a pagar os desvios que muitos continuam a esconder nas Caimões. Combato este poder ilegítimo baseado em mentiras descaradas, repetidas até à exaustão, com desfaçatez, por profissionais na arte do logro. Mentiras escritas pelos consultores das agências de comunicação, a quem ainda por cima pagamos, para que a mentira seja melhor assimilada pelos nossos cérebros, bombardeados por notícias reproduzidas como serigrafias. Recuso ficar refém desta simulação de democracia, porque os portugueses delegaram o poder com base em promessas violadas diariamente e têm o direito exigir o fim desta vigarice, deste regime de terroristas sociais.

A desumanidade desta gentinha é o que mais me revolta. Por muito que estejam instruídos e convictos das maquinações que levam a cabo, como podem ficar indiferentes a toda as mortes que provocam à sua volta? A morte daqueles que se vêm obrigados a fugir do seu país para enfrentar um mundo desconhecido e em crise. E a morte das famílias e amigos que deixam para trás. A morte daqueles que diariamente, qual zombies, se encontram nas filas dos subsídios, que o tempo resolve matando-os de vez. A morte dos que sobrevivem com os restos dos caixotes do lixo dos outros. A morte dos idosos, e menos idosos, que se descobrem um dia no meio da rua, muitos deles sem perceberem o que lhes está a acontecer, porque não foi este o mundo que construíram. A morte daqueles que todos os dias são obrigados a fazer escolhas entre a comida ou os medicamentos, a sobrevivência ou a escola dos filhos, a energia dos radiadores ou a renda de casa, a dignidade ou a esmola. A morte dos que desistem. Ao mesmo tempo que os vampiros vão vendendo o país enquanto tratam do branqueamento dos milhões que desviaram, e que nos querem obrigar a pagar.

Os tempos desumanos que vivemos obrigam-me a reviver o passado. Eu já tinha estado naquela fragata, na base do Alfeite, quando íamos fazer companhia ao meu pai nalgum dos domingos em que ficava de serviço. Recordo um seu camarada que um dia, à mesa, disse que não iria ter filhos porque não lhes queria deixar um mundo pior do que aquele que lhe tinham deixado. A frase marcou-me, mas nessa altura só pensei que os meus pais eram uns heróis por nos terem dado a oportunidade de viver, a mim e ao meu irmão. Hoje compreendo melhor o que ele queria dizer, mas quero lutar para que ele não tenha razão. Matar o planeta é uma forma de matar a Humanidade, mas agora estão a matar humanos, de muitas formas e a sangue-frio. Impunemente.

Passados alguns anos, estive presente na estreia dos Capitães de Abril. Alguém afirmou que, sobre o 25 de Abril, poderiam ser feitas mil e uma histórias diferentes. Mas optaram por aquela. Amélia, uma criança de 6 anos, era a Maria de Medeiros daquele dia inicial. Para mim fiquei sempre a olhar aquela criança como um símbolo de Liberdade. A Liberdade que emerge em todos nós nos 25 de Abril. A Liberdade que, em nome de todas as Amélias que nós algum dia fomos, é urgente reconquistar. Estou a escrever estas linhas na minha viagem entre Lisboa e Atenas. Quero transmitir toda a nossa solidariedade ao povo grego nesta hora insuportável. A minha vida na estiva pesa muito quando se trata de solidariedade internacional. Por isso não vou estar nas ruas de Lisboa no dia 2 de Março, mas venho para as ruas de Atenas. Nas dezenas de cidades onde a nossa canção vai protestar, não interessa a língua, porque a Humanidade é só uma e quer fazer parte daquele Mundo-Grândola-Cidade onde O Povo É Quem Mais Ordena.

No próximo dia 3 quero imenso regressar a um País em festa porque a Maré Alta da Liberdade voltou a passar por aqui, por aí.