terça-feira, 29 de outubro de 2013

Um dia fui um ser humano - intervenção de Nelson Arraiolos

Um dia fui um ser humano

Trabalhei em muitas profissões diferentes, duma ponta à outra do país. Desde construção civil até call centers. Vivi sozinho em cidades estranhas. Nunca poderá ser dito que os sítios onde trabalhei se adaptaram a mim. Eu é que me adaptei ao trabalho.

Começou a guerra aberta aos trabalhadores à qual alguns, descaradamente, se atrevem a chamar “crise”. Vieram os gafanhotos dos bancos e vieram os credores. Veio um milhão e meio de desempregados, uma massa humana de famintos e desesperados, como os patrões gostam, para lhes poder dar trabalhos de 300€ e ainda se rir com soberba na cara deles; rir-se bêbados com o prazer mesquinho de quem põe e dispõe da vida alheia. 

Descobri que estava a ser despromovido. É que não me querem como ser humano, nem a mim nem a vocês: querem-nos como animais de carga. Eu nem para animal sirvo. Enviei milhares de currículos, mas... sou velho demais, doente demais. Foi assim que saltei directamente de ser humano para dano colateral. Um daqueles mortos que há nas guerras quando uma bomba falha o alvo e aterra num bloco de apartamentos cheio de famílias. Não há lugar para mim na economia da austeridade. “Morre, se faz favor, rapidinho e sem barulho.”

Por algum tempo o que resta do 25 de Abril permitiu-me ser um morto com alguma dignidade. Tive o meu subsídio de desemprego. Depois esse acabou. Não tive direito a subsídio subsequente ou de inserção social. Tal como eu, há outro meio milhão de mortos que vive neste país sem qualquer rendimento, sem qualquer esperança, alimentando-se da caridade da família e dos vizinhos. Ou acaba na rua a passar fome. Danos colaterais perante a vista de todos, destroços humanos da guerra económica a ser feita aos trabalhadores.

O Estado, que, nas mãos dos partidos dos patrões, não passa de um carrasco, continua a acossar-me. Pede-me o que não tenho. Manda as Finanças atrás da minha família. E eu descubro que só uma coisa me pode devolver a vida, ou pelo menos a dignidade: resistir.

Avisei o Presidente da República, a Ministra das Finanças e a repartição de Finanças do local onde resido, Bombarral. Avisei: Acabou-se. Enquanto me tomarem como um dano colateral das suas operações de resgate dos bancos, eu não tenho qualquer responsabilidade perante este Estado. Cessei qualquer pagamento de impostos.

O Estado tornou-se o instrumento da nossa destruição. Façamos então os possíveis por acelerar o fim dos nossos carrascos. Irei em breve lançar um apelo à desobediência civil e sei que conto com a vossa ajuda para o fazer propagar.
*Foto de Guilhotina.info