Em entrevista à TVI no passado dia 23 de Agosto, António Borges, conselheiro do governo para as privatizações, afirmou que considerava «muito atraente» a possibilidade de concessionar a RTP1 a investidores privados, cenário que seria acompanhado da extinção da RTP2. As declarações do ex-director do departamento para a Europa do Fundo Monetário Internacional (FMI) e ex-vic
e-presidente do Golman Sachs International tiverem o condão de trazer para o debate público e mediático questões que há muito deviam suscitar a atenção dos cidadãos.
Essas questões não se prendem apenas com o serviço público de rádio e televisão – ainda que a sua defesa seja urgente e exija um empenhamento de cidadania, que seja crítico e capaz de escrutinar a qualidade e a boa administração de um serviço que tem de assegurar o direito constitucional à informação. Com efeito, as declarações de António Borges, o mesmo que já nos disse que o desemprego é uma grande oportunidade e que é urgente baixar ainda mais os salários, vieram mostrar um quadro ideológico e de funcionamento que tem vindo a nortear a destruição de todos os serviços públicos. E vieram também ilustrar uma transformação que está a ocorrer ao nível da natureza do regime democrático, que parece ter sido, ele próprio, objecto de uma concessão a interesses privados. Em tempos de austeroliberalismo, a democracia converteu-se numa democracia concessionada.
Este será, sem dúvida, um regime «muito atraente». Mas não para a maioria da população. Com o desmantelamento dos serviços públicos, e seja qual for o regime jurídico que é encontrado para cada caso (privatização, concessão, parceria público-privado, etc.), o que está a acontecer é uma transferência sem precedentes de recursos públicos para um capitalismo de rentistas e especuladores financeiros que operam à escala nacional e global. E é também um desapossamento dos instrumentos imprescindíveis para servir a população e garantir o direito aos vários bens públicos (informação, água, saúde, educação, habitação, segurança social, etc.).
Esta transferência ocorre ao mesmo tempo que está a ser imposto ao mundo do trabalho um aumento brutal da exploração: diminuição de salários e das indemnizações em caso de despedimento, aumento e desregulação do tempo de trabalho, ataque à contratação colectiva e outras conquistas sindicais, crescente precariedade e desemprego, etc. E acontece a par da redução, senão supressão, de formas de protecção social (subsídios, abonos, etc.) sem as quais não pode haver coesão social.
Se conjugarmos todas estas transformações que se verificam na sociedade portuguesa – um dos mais nítidos balões de ensaio do projecto austeroliberal –, não é difícil perceber que, apesar de formalmente vigorar um regime que tem na soberania popular a sede da sua legitimidade, na verdade foram-lhe retirados os instrumentos para poder executar o que deviam ser as suas missões fundamentais. Quais são elas? Em primeiro lugar, combater a exploração, a qual é responsável (com as falhas nos serviços públicos e na fiscalidade progressiva) pela tragédia colectiva que são as desigualdades socioeconómicas. Em segundo lugar, criar, através da redistribuição e de um crescimento sustentável, as condições materiais e subjectivas que permitam a cada cidadão desenvolver-se como um sujeito autónomo, isto é, como um ser livre.
Como foi possível deixarmos que se concessionassem os instrumentos da democracia (administração de recursos, definição de políticas redistributivas, etc.), sem percebermos que o corolário disso seria a perda, no país e fora dele, do poder indispensável para prosseguir as finalidades substantivas da própria democracia? Entre outros factores, pesou certamente o modo como, colonizados pela ideologia do pensamento único e seus aparelhos, descurámos a dimensão conflitual das escolhas que constantemente ocorrem nas sociedades. Desvalorizámos o conhecimento aprofundado – que exige estudo e atenção aos detalhes – e adiámos o posicionamento activo e responsável de cada um de nós sobre as decisões tomadas em nosso nome. Perdemos a dimensão do antagonismo, muitas vezes irreconciliável, que existe entre interesses. Esses interesses contrários continuaram a dar origem a escolhas, mas delas esteve ausente o critério popular.
Herdeiros de gerações que instauraram a democracia, as férias, o salário mínimo ou o direito de todos à assistência médica, perdemos de vista – com a preciosa ajuda dos dispositivos postos em prática para apagar ou rever a memória histórica – o quanto todos estes direitos foram arrancados a poderes que tudo fizeram para se lhes oporem. E perdemos também de vista, no mesmo passo, todos os direitos que já deviam ter sido alargados a mais cidadãos, a contragosto dos poderosos. A fixação de um salário máximo é apenas um exemplo entre muitos.
Enquanto isso, o poder de fazer as escolhas que afectam as nossas vidas foi-se concentrando numa aliança formada entre dois pólos (intensamente porosos…). De um lado, figuras e instituições que são apresentadas aos cidadãos como «técnicas» e «neutrais», mas que as mais das vezes estão ligadas aos interesses dos mercados financeiros, e nem sequer são submetidas ao crivo democrático das eleições e da prestação de contas. Do outro lado, os poderes públicos que executam as políticas que beneficiam aqueles interesses privados, por identificação ideológica e porque dessa forma se transformam nos ricos e poderosos (mesmo que descartáveis) distribuidores de negócios, dinheiro e poder. Fora desta aliança, a maioria da população. Cada vez mais afastados da participação e da negociação democrática, os cidadãos são transformados em objectos, e já não sujeitos, de política.
A democracia concessionada ao «governo dos técnicos» produz uma objectificação e uma realidade social tão grave que atordoa, pelo menos temporariamente. Esse atordoamento assume várias formas, em vários rostos: para uns é difícil acreditar que uma situação tão grave e tão contrária às promessas da democracia possa ser algo mais do que passageira; outros convencem-se de que têm culpa, individual e colectiva, nas desgraças de que são vítimas; outros ainda perdem a esperança por não verem surgir um pólo aglutinador capaz de criar uma aliança alternativa àquela que detém o poder (com propostas políticas e força para as concretizar); muitos outros vivem consumidos pelo medo de não ultrapassar as dificuldades, gastando uma imensa parte de cada dia em estratégias e tarefas de sobrevivência individual.
Não há como negá-lo: recuperar os instrumentos da democracia que permitam uma nova, mais responsável e mais participada reorientação da comunidade para os combates pela igualdade e pela liberdade é algo que vai ser feito em condições extremamente difíceis. Mas os cidadãos não têm alternativa senão fazê-lo. Ou deixarão de ser cidadãos. Porque, em rigor, a democracia concessionada não é uma democracia.
SANDRA MONTEIRO, Jornalista, Directora do Le Monde Diplomatique - edição portuguesa