A manifestação de 15 de Setembro não é a primeira manifestação a que vou. Não será a última. Mas faz pouco tempo desde que comecei a ir a manifestações. Até há poucos anos atrás não participava em muitos protestos, mas o mundo acelerou muito desde então. Mudou. E o que nós aceitávamos como um mundo com muitas injustiças mas ainda assim relativamente digno já é uma miragem que começa a desvanecer-se. Nos últimos anos tudo mudou e as nossas vidas deixaram de contar para o que quer que seja. Para a economia, para os nossos governantes eleitos. E nós deixámos, enquanto povo, que assim fosse. Deixámos, individualmente, que assim fosse. Dividiram-nos e individualizaram-nos para que só olhássemos para nós mesmos, para os nossos mundos pequenos e isolados, débeis. Aceitámos baixar a cabeça quando nos impuseram cortar-nos os salários, comer e calar quando anunciaram o encerramento de maternidades e hospitais, resignar-nos quando anunciaram o fecho de escolas e o despedimento de professores, virar a cara para não ver quando destruiram os direitos no trabalho e impuseram a precariedade para toda a gente. Tardámos a reagir, tão forte era a avalanche de medidas, dia após dia, cada semana ficávamos boquiabertos com a desfaçatez com que se destruía por decreto tudo aquilo que demorou tanto tempo a construir. Tentámos, uma e outra vez, que se percebesse o que estava a acontecer. Que toda a gente percebesse. Mas a repetição constante de que era inevitável, de que tínhamos vivido acima das nossas possibilidades, de que não havia dinheiro, fez muita gente acreditar que era mesmo verdade. Era só ligar a televisão, ouvir o rádio, ler num jornal: "A culpa é vossa!". E nós comemos esta versão, herdámos pelos ouvidos e pelos olhos a culpa da crise. Ouvi pobres, que toda a vida viveram no desenrascanço e na penúria, dizer que tinham vivido acima das suas possibilidades. Ouvi de pessoas que nunca tiveram dinheiro de sobra ao fim do mês dizer que tinham gastado demais, que não deviam ter enviado os seus filhos para a escola, que tinha sido um luxo. Ouvi o homem mais rico do país dizer que não era rico e ouvi o segundo homem mais rico do país dizer que os seus próprios trabalhadores eram uns preguiçosos e que a sua fortuna, a tinha feito ele sozinho. Ouvi um governante eleito dizer que tínhamos todos de empobrecer e que quem tinha juventude e capacidades, deveria partir, ir embora. Herdámos o espírito da derrota, da submissão e do individualismo, com que nos querem domesticar e voltar a tornar um povo pobre, burro e miserável, arrastando-se nas sobras das fortunas das 5 ou 10 famílias ricas do país. Mas há uma coisa importante a saber acerca das heranças: não temos de aceitá-las. E por isso vi também milhares de pessoas mobilizar-se, vezes sem conta, tentanto novos modelos, novas organizações, novas articulações. Por vezes funcionou, outras não. Mas tentou-se, uma e outra vez, e enquanto houver vida e gente digna que fique em pé e que resista, a herança pode ser rechaçada.
Sou activista há poucos mas intensos anos na área da precariedade, e também tenho trabalhado na questão da dívida pública. São dois assuntos da maior relevância nos dias de hoje, e intimamente ligados com tudo o que se vem passando na degradação das nossas vidas, no desemprego à nossa volta, dos trabalhos presos por cordéis que encurralam as pessoas e lhes retiram a confiança e a dignidade, na justificação para impôr medidas de austeridade embora não se saiba o que estamos a pagar, apenas que é preciso pagá-lo. E os barões da moralidade vêm falar-nos do seu trono da nossa necessidade de aceitar em paz e tranquilidade que tenhamos que pagar o que eles se recusam a divulgar, e pagá-lo com juros através da destruição da nossa sociedade.
A nossa sociedade, como as outras sociedades do sul da Europa, têm muitos problemas, e muitos problemas comuns também. Mas hoje temos todos não um espinho no pé, mas uma pistola na boca, e ela chama-se troika. Meteram-na na nossa boca para - dizem - salvar-nos. Mas tudo o que aconteceu desde que ela veio foi piorar o que já estava mal. Diziam que não havia dinheiro - agora há muito menos. Diziam que não havia crescimento - agora há recessão. Diziam que não havia emprego - estaremos cada vez mais perto de dobrar o número de pessoas que não têm emprego. Diziam que a precariedade era um grave problema - e por isso decidiram torná-la regra. Diziam que tínhamos de cumprir os nossos compromissos - e por isso rasgaram um dos nossos compromissos mais antigos e mais consensuais, a Constituição da República e todas as leis que foi preciso ignorar para aprovar as medidas impostas pela troika. Diziam que era preciso pagar o que devíamos - e por isso foram pedir mais dinheiro emprestado, com mais juros, e foram buscar o dinheiro de quem trabalha todos os dias e de quem descontou a vida toda para poder ter uma velhice tranquila. Faz-nos ter que perguntar qual era verdadeiramente o objectivo da intervenção da troika, se tudo aquilo que era previsto tratar, piorou? O objectivo da troika era um e um só - impôr um novo regime - o regime da austeridade. Hoje temos um novo inimigo, comum e absoluto: chama-se austeridade, e o seu representante máximo é a troika. O governo português, como os seus congéneres mediterrânicos, apenas tem a força política para impôr a austeridade por ter a troika nas costas, a puxar cordéis e a dar direcções de fora. Temos um novo inimigo e é um inimigo comum e absoluto. É um inimigo para todas as lutas que se travam neste momento. É um inimigo para quem defende os direitos dos imigrantes, para quem luta contra a pobreza, contra a precariedade e o desemprego, contra o racismo, contra a destruição do SNS, para quem luta pela cultura, pela protecção do ambiente, pela liberdade de informação, pela justiça, pela liberdade, pela democracia e pela dignidade na sociedade. Todas as lutas são importantes. Todas têm de ser travadas. Encontramos na troika uma raíz para todos estes males. Não é a única mas é, neste momento, a mais importante. É tempo de enfrentá-la abertamente. Colectivamente. Façamos de dia 15 um dia em que novamente voltemos a enfrentar e a desafiar não só a troika e o governo como a nós mesmos e o nosso isolamento. Chega de silêncio. Já não se pode! Está na hora de virar o bico ao prego.
Não escolhemos o tempo em que vivemos. Só nos é dado a escolher o que fazer com esse tempo que temos. Queimemos as heranças de individualismo que leva à resignação, submissão e derrota. Reergamos o legado de desafio, de disputa, de solidariedade e de força para mais uma vez nos levantarmos, recusando ser guiados mansamente para o precipício.
Organizemo-nos para a dura luta que temos pela frente. Façamos algo de extraordinário.
Dividiram-nos para nos oprimir. Juntemo-nos para nos libertarmos.
JOÃO CAMARGO, Engº do Ambiente, Associação de Combate à Precariedade - Precários Inflexíveis, Auditoria Cidadã à Dívida