domingo, 3 de fevereiro de 2013

Texto de Helena Pato

Nós, que não apagámos o passado, nem podemos esconder as suas cicatrizes, temos a obrigação de não passar ao lado desta fractura na Democracia

É muito tarde para eu colocar o curso da vida entre parêntesis, mas assim está. Escrevo-vos na primeira pessoa. Sou uma entre muitas, mas agora sou diferente até de mim própria. Deixei de rir às gargalhadas e receio. Mas «receio» já não é a palavra que melhor se ajusta ao que sinto.
No meu bairro, tal como na minha vida, tudo caminha aparentemente sem grandes mudanças. Perto da rua onde vivo, a escola onde dei aulas durante 36 anos parece a mesma. Alguém se apercebe de que têm sido lançadas granadas de longo alcance sobre décadas de construção de um sistema democrático de educação? O sistema educativo dá sinais de começar a esboroar-se. Sem estrondo, inteligentemente destruído aos poucos (não é exagero meu, é experiência de ensino!)…
A mercearia em frente de casa desapareceu e o pequeno restaurante, onde às vezes íamos almoçar, fechou as portas. Por todo o lado, surgem como cogumelos, multiplicam-se as mini-lojas de compra de ouro e prata, para o empobrecimento envergonhado de gente que não estava no fim da linha, muitos idosos, lisboetas que ainda detinham algumas posses, meia dúzia de coisas de valor (a salva que foi presente de casamento, a pulseirinha de bebé, o cordão do relógio do avô: uma lástima!)… De paredes-meias com o meu bairro, a freguesia dos Anjos envelhece e desfaz-se em pobreza. Os mais pobres dos pobres espalham-se pelos bancos do jardim da igreja, à espera da refeição que lhes servem caridosamente na «cantina do Sidónio» (triste memória dos anos da guerra!), ou a fazerem tempo para uma noite enregelada sobre caixas de cartão, debaixo das arcadas da Avenida Almirante Reis (aguentam!)…

Tirando os ricos (onde param?) e tirando os bancos (logotipados sinistramente pela cara de Ulrich do BPI), quem não estará na bicha da entrada para o inferno? Eu estou. E esqueço que estou, sempre que fico com o coração a estoirar e o pensamento obcecado pelas imagens dos mais velhos dos velhos, a quem tiram a saúde e atiram para a pior das misérias (pensionistas, reformados, um roubo, um escândalo!). 
No campo do jogo neoliberal, é a todos nós — gente sem eira nem beira ou explorada até ao tutano pelo capitalismo — que, agora, o Governo e os seus apoiantes (mórmones com fatinho de finanças…) vêm atirar culpas, como pecados. Pecados em remissão: gastámos de mais, produzimos de menos, blá-blá-blá… e, porque assim foi, é preciso pagar a conta celestial e em contrição permanente. Levam-nos o prato, levam-nos o ensino, a casa, a saúde, o carro e os direitos sociais. Levam-nos os filhos para lá das fronteiras da pátria. Enquanto eles (os sem pátria) fincam os pés e ficam; e com uma missão ideológica, numa cruzada.
A crise agrava-se e, na comunicação social, é tão intimidatória a girândola de informação técnica e de opiniões; e são tantas as ilusões, diariamente aí induzidas, que os portugueses regressam (alguma vez terão de lá saído?) à atitude de conformismo dos seus avós e bisavós. São muitos os que se atordoam e, sem verem pela frente um projecto político alternativo consistente e credível, sentem-se entalados entre as cruéis medidas de austeridade que nos vêm sendo impostas e o medo de que a desgraça se possa tornar ainda maior (maior? Nada mais enganador!)…

Vivi décadas da minha vida num regime que julgávamos afastado para sempre. De repente, deparamo-nos com o regresso de medidas políticas e de concepções sociais desse tempo, despudoradamente expostas por estranhos na nossa casa (a casa da Democracia de Abril)…
Nós, aqueles que não apagámos o passado e que nem podemos esconder as suas cicatrizes, temos a obrigação de não passar ao lado desta fractura na Democracia. Evocar, em lamentos, o saudoso 25 de Abril é pouquinho! (cá por mim, morrer antes de ficar incapacitada, não!). Há dias, há horas, momentos, em que o presente é tão assustador e tão humilhante que, para os da minha geração, tem reflexos da ditadura (afinal, companheiros, enganámo-nos: parecia arrumada nas páginas da História, não era?). Os atropelos à liberdade de expressão, a emigração (outra vez, os exílios), os cortes nos direitos de quem trabalha e nos apoios sociais, a progressiva perda do poder de compra, o desemprego que nos rodeia e avança (como uma peste que, por ora, não entrou a minha porta: haja deus!) são o retrocesso, em escalada, nas conquistas da civilização europeia do pós-guerra (ó céus, como é possível?). Aos meus olhos, é pior do que uma derrocada. Vejo o filme a andar para trás: volto às situações contra as quais lutámos e que, e nalguns casos, ainda antes do 25 de Abril, superámos, festejando as vitórias (é difícil acreditar, não é?)…
Transformar o empobrecimento generalizado numa perspectiva estratégica de solução para um país que precisa de mais riqueza é um absurdo. O desmantelamento do estado social e a perda de direitos dos trabalhadores representam a negação de Abril (não pode ter sido em vão que tantos cantámos Grândola!). A degradação da escola pública e do serviço nacional de saúde, a privatização de empresas públicas em sectores de interesse estratégico nacional, como a água, não podem deixar-nos indiferentes. A rua ainda é um lugar calmo, que nos pertence e que espera por nós.

Só o inverter desta trajectória de empobrecimento e o fim deste ajuste de contas ideológico (aguenta-te, Constituição!) nos colocarão novamente na rota da esperança. A subordinação do estado aos mercados financeiros não é solução. 
Tenho medo do futuro (claro!), não tanto por mim mas pelos nossos filhos, pelas nossas crianças e, sobretudo, por alguns amigos idosos que vejo entre a depressão e o desânimo; e já convivo dificilmente com o pânico dos mais frágeis. 
Agora juntou-se a raiva. Um tipo luzidio (parecendo ser português) chega-se à beira das câmaras da televisão e vomita frases sobre nós, sobre os gregos e os sem abrigo (tudo «gentinha» que lhe infecta o ar que respira)… «Ai aguentam, aguentam!» – diz o banqueiro, com os bolsos atafulhados de centenas de milhões de euros de lucros. Com um descaramento sem par. É a infâmia. Provocação? Apenas sobranceria? Parecerá estranho, mas ao ouvi-lo qualquer coisa mudou em mim. Como se um nó se desfizesse no meu peito e por perto soasse um grito de guerra. Pois que seja este mais um empenhado combate! (e comecei a escrever estas linhas)
Vamos lá outra vez!

Tal como durante a luta que travámos durante décadas para acabar com o regime fascista, temos naturalmente pressa na mudança. Mas a incerteza acerca do modo e do tempo em que ocorrerá essa mudança não pode paralisar-nos no que temos de melhor: a capacidade de acreditarmos que é possível e de agirmos para alcançar um outro dia. Grândola? (signos!) Talvez. Seguramente, o povo é quem mais ordena!