O que me abre a boca de espanto é poder estar a escrever um testemunho pró-manifestação com tanta largueza, a uma distância tão confortável a minha preguiça até aplaude de pé, uma largueza que até é desconfortável, quase sem deadline, como se não fosse urgente sair para a rua nem que fosse para a semana, ou já na próxima sexta, ou agora, o que é que estou a fazer entre quatro paredes quando podia estar muito bem na rua a gritar, a ficar rouco, a dar corpo, couro e cabelo à minha chateação, como dizem os brasileiros, eles que até vão fazendo uma revolução tranquila e com um acordo ortográfico que não admite o vocábulo crise, gostava de largar os activismos de sofá, tão cómodos, mea culpa, preteri-los em favor das calçadas, das ladeiras e avenidas, até quando será possível aguentar com cinismo, sarcasmo e relativismo e fúria meramente digital e ainda pós-moderna as estocadas que nos vão dando, as bofetadas que nos vão assestando, seja por via dos relatórios, dos barros atirados à parede que testam a nossa docilidade, dos cortes e das incisões feitas à nossa dignidade, das atoardas lançadas por banqueiros que no fundo são mesmo quem manda, o eleito de Massamá faz só de guarda-livros provisório e bem amestrado, não abatam o Pedro porque ele só ladra (em público) enquanto os que mandam mordem pela calada (e também à vista de todos), perdeu-se a vergonha, cabe-nos a nós não perder a inquietação, a cidadania, a intolerância à filhadaputice, como se diz em ciência política, a comunidade é nossa, as ruas são nossas e a responsabilidade, pois. Da última vez que me agitei nas massas com preceito voltei para casa com seis pontos na testa e menos vinte euros na carteira e com os olhos cheios de um país que não quero (re)ver, razão pela qual voltarei a sair e voltarei a sair e voltarei a sair e voltarei a sair, risca o disco e toca o mesmo, até porque está na hora de serem eles a terem medo de sair à rua. Eles, não nós. A 2 de Março, em não podendo ser antes.