quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Texto de Joaquim Paulo Nogueira


Salvar os países começa por ser salvar a Europa. 
 
Dia 2 de Março é mais um passo no percurso de fortalecimento da nossa participação cidadã que começámos a trilhar mais intensamente a partir do 12 de Março de 2011. Não será o último. A urgência deste percurso é ditada pela consciência de que vivemos uma rápida degeneração política da vida em democracia na Europa.
Não sei se há outra definição para a ideia do abismo político em que nos encontramos
: condicionados a escolher governantes que se apresentam a eleições com um determinado programa político, sabendo eles, e sabendo nós, que eles vão governar através de memorandos políticos firmados com o BCE, o FMI e a Comissão Europeia.
A política europeia foi sequestrada por um pensamento e uma doutrina onde a lei do mais forte é imperativa e substitui a ideia comunitária. Salvar os países começa por ser salvar a Europa.
Parece um objectivo inalcançável, não parece? Não foi assim que o pensaram aqueles que perceberam que para matar a Europa tinham de começar a destruir aquilo que era o elemento diferenciador da presença política europeia: a solidariedade, seja lá o nível ou o âmbito - local, nacional ou global – pelo qual a encaremos. É uma existência paradoxal, sempre: a força da Europa, a sua união politica e económica é também o ponto de partida para a sua imensa vulnerabilidade.
Face a esta verdadeira catástrofe política em que a Europa está mergulhada, e quando o sistema político parece só conseguir replicar a tragédia da política, a questão é de natureza cultural: como não nos encontrarmos? Como não descermos juntos as ruas? Como não enchermos connosco as nossas praças? A questão não será tanto em torno das razões que temos para sair à rua, elas multiplicar-se-ão exponencialmente por toda a nossa diversidade política, cultural, social, a questão é outra: como poderemos ficar em casa quando todo o nosso mundo está a ser destruído?
No dia 2 de Março descerei a Avenida da Liberdade com muitas pessoas que exigirão a demissão do Governo. Não sendo isso para mim uma questão essencial – este governo não me desiludiu em nada, infelizmente - não me incomoda nada dar as mãos a todos os que querem o seu fim. Este é um governo que perdeu toda a legitimidade política para poder governar e que já não estaria em funções se em Belém tivéssemos um Presidente que vigiasse o exercício governamental. Ou se tivéssemos já interiorizada uma cultura e uma ética política em que os governantes se sentissem responsáveis perante a comunidade. Em vez de exigir a demissão deste Governo, prefiro pensar que a rua irá dar àquele vasto campo político a que costumamos chamar Esquerda, forças, ideias e dinamismo para criar uma alternativa política.
Talvez haja condições muito particulares para isso: em primeiro lugar, a destruição do Estado Social, nos seus diferentes domínios, saúde, educação, justiça, cultura, já não se situa no plano da querela ideológica entre Esquerda e Direita, foi transposto para um plano tão descarado da pilhagem dos recursos públicos que até a base ideológica da direita cora de vergonha e desaprova o saque.
Depois, a destruição da economia está a ser feita através de uma subordinação cega a planos e programas económicos cuja legitimidade não decorre daquela credibilidade de natureza económica que a direita gosta de exigir como seu pergaminho político. Apenas se funda no uso férreo de um autoritarismo e poder discricionário do Estado no aumento da colecta de que tanto se envergonha o liberalismo económico. E ainda, pelas condições muito particulares em que o sonho de uma Europa se transformou rapidamente no pesadelo de um totalitarismo financeiro que — incompreensível ou paradoxalmente — parece basear o seu cerco, a sua tutela e a sua força na incapacidade de responder positivamente às questões existenciais das pessoas, das comunidades e dos povos.
Por isso também é tão importante sair à rua em 2 de Março, anunciando a primavera que aí vem: não há esquerda credível sem uma rua forte, sem uma rua em festa, sem uma rua participada e cidadã. E desde o 12 de Março muito tem sido feito para reacender esse fogo comunitário. Pese embora a verdadeira destruição de grande parte da nossa actividade cultural e artística nos últimos anos, o que em si é uma tragédia para o desenvolvimento da comunidade e também da nossa cidadania, tem sido nos movimentos de cidadãos — onde avulta para mim a Auditoria Cidadã à Dívida — que tem surgido uma dinâmica cultural e de participação política que fortalece a comunidade.
Porque o pesadelo que estamos a viver é também uma consequência da intensa manipulação ideológica em que mergulhámos e que é tão mais violenta quanto vive de um contexto em que o manipulador é também o manipulado. Criámos um paradigma mistificador que é o condicionador da nossa vida política: para nos encontrarmos temos de ter alternativas, temos de ter razões, temos de ter ideias. E deveria ser exactamente o contrário: deveríamos encontrarmo-nos para construirmos alternativas, para pormos em causa as nossas razões, para começarmos a pensar de outra maneira.
É essa vaga que este mar anónimo e manifestante que tem oposto à Europa dos jogos de títeres e da usurpação política a ideia de uma Europa das Pessoas tem trazido. É difícil assim encontrar razões para não sairmos de casa. Juntos temos menos medo, juntos metemos mais medo ao medo que por aí começa a querer andar descaradamente em forma de intimidação, de interrogatório, de inquietante perversão do uso dos meios públicos de segurança. Eles não sabem que o autoritarismo pode fazer da vida de cada um de nós um pequeno inferno existencial mas só consegue tirar de cada cidadão a sua liberdade se este já tiver, previamente, abdicado dela. É isso que a rua nos faz, é isso que nós fazemos na rua. O povo é quem mais ordena, dentro de ti, ó cidade.