Decides aflito deixar o quarto. Carregas contigo as noites iguais aos dias, o último despedimento que com bondade decidiste carregar como mais um falhanço teu com a vida. Carregas as noites em branco entre fumos, o cão, a tua música que compões como se não houvesse amanhã e já não sabes se é segunda-feira ou domingo. A universidade está cara e o trabalho já não procuras. A tua tristeza tem o peso da tua idade: 25 anos. Em menino tinhas luz dentro dos olhos e a vida era toda tua quando, cuidadosamente, agarravas nas mãos um escaravelho para observares de perto e aprenderes com ele os mecanismos da natureza. Depois tiraram-te a natureza, os escaravelhos esconderam-se debaixo do asfalto e a luz escureceu à volta de todo o teu rosto. O cerco apertou-se à tua volta e tu começaste a acreditar que se o mundo, o país, a cidade, não te davam a mão, era porque tu não merecias. As feridas do mundo tomaram todo o teu corpo e fechaste os olhos como quem acredita que sempre falhou e que já nada vale a pena. Com 25 anos apenas perdeste de vista o futuro e deixaste de acreditar.
Mas é o dia 2 do mês de Março e por isso decides deixar o quarto. Não vais levar nenhum cartaz. Sem gritar vais estar a reivindicar a possibilidade de voltares a sonhar e de teres uma comunidade em quem podes confiar e que podes merecer. Estarás na rua pela possibilidade da luz voltar aos teus olhos libertando todos os escaravelhos presos debaixo do asfalto.
E eu vou estar contigo.
Decides deixar a casa. Estás ansiosa. Tens 35 anos e fizeste tudo como te mandaram: estudaste, trabalhas porque ainda tens trabalho, mas sabes que não será por muito tempo, e agora, com menos dinheiro porque te roubam no salário, vais talvez ter de deixar a casa. Desde menina adoeces, porque vês as coisas e as entendes e sonhas muito. E não há sonho que se realize. Não podes fazer teatro, porque não há maneira de pagar a casa e para a cultura não há dinheiro e os teatros fecham e a cultura adoece. O inimigo está por aí como sempre esteve, mas agora com menos pudor, a roubar, a destruir, a insultar a tua e todas as dignidades. Queres ir embora, pensas nisso todos os dias, mas as saudades apertam ainda antes da partida. E roubam-te o filho que querias ter. Porque para o teu filho tu querias árvores e uma escola com dignidade. Porque para um filho é preciso ter um futuro.
No dia 2 de Março vais estar na rua. Com muita vontade de chorar. Pelo teu filho que tem de continuar à espera, pelo teu irmão, pelo teatro, pelo teu avô, pela água e pelas árvores, pelos medos e angústias que te enchem o peito, pelos meninos de todo o mundo da Palestina e da África e da Grécia e daqui.
E eu vou estar contigo.
Cresceste a olhar para a rua. Amas a cidade e sais com ela todos os dias, desde os 18 anos, para trabalhar. Sabes de cor o que é a vontade prepotente dos patrões e ganhas, de cabeça erguida, o salário pequeno para tantas horas de trabalho. Desde menino sonhas com a tua vida entre a música e a vontade de ficar absorto a olhar para o mar. Nove horas de trabalho por dia desde os 18 anos e os sonhos adiados. Amas demasiado a cidade e o país para poderes partir. Depois, a empresa fecha, e mudam-te de lugar e tu vais e mudam-te os horários e tu vais e trocam-te as funções e tu fazes. Perdes direitos, reviram-te a dignidade, a tua raiva cresce e já não sabes contra quem a atirar. Lês no comboio, na camioneta, uma hora até chegar, e o outro dia será igual e o dinheiro será menos e às vezes em casa tudo parece ruir à tua volta. Sempre acreditaste em comunidades. Aconchegas-te na esperança de a encontrar. Agitas-te, consomes-te, reivindicas. Tudo à tua volta está por um fio: o trabalho, a casa, a música.
No dia 2 de Março vais estar na rua. Queres reencontrar a dignidade nas caras como no dia 15 de Setembro viste. Queres estar de braço dado na comunidade que sonhas. E gritarás O POVO É QUEM MAIS ORDENA e terás lágrimas nos olhos, porque milhares gritarão contigo e porque poderás continuar a acreditar na mudança.
E eu vou estar contigo.
Eu vou estar na rua no dia 2 de Março porque uma tristeza enorme pesa sobre o mundo.
Vi , com 11 anos, o meu pai ser preso. Odiei a pide, o salazar, o marcelo, o colonialismo, o capitalismo, fui perseguida, quase expulsa da faculdade, escrevi, fugi à polícia, tive falsos nomes e identidades, lutei, vi África e a Palestina, roguei pragas e fui camarada e companheira e professora e vi a escola pública adoecer e vi os meus alunos com fome de pensamento e de pão e vi e tornei a ver gente a ser torturada e perseguida. E a besta ainda aí está travestida de FMI, BCE, Comissão Europeia, ulriches, passos e companhia e a guerra continua e as prisões devem abrir-se para que eles entrem, para que nos deixem respirar e beber a água que é de todos e para que os meus netos possam nascer ao pé das árvores, para que o meu filho saia do quarto a acreditar na sua vida e na Amazónia que também lhe pertence, para que não seja pecado o meu amor fazer música e mesmo assim viver e a minha filha fazer teatro e mesmo assim viver com dignidade, pão na mesa, serviço de saúde, direitos.
QUE SE LIXE A TROIKA! Que se lixem bancos e banqueiros, que se lixe o belmiro e o relvas, que se lixem todos os bem comportados que nunca viram o infinito.
Vou estar na rua para que eles oiçam e saibam e nunca esqueçam que O POVO É QUEM MAIS ORDENA!