quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Texto de João Camargo

São tempos horríveis. Feios, sujos, mentirosos. Mesmo as pessoas habituadas a engolir sapos já não conseguem mais. A mentira ocupou o discurso público. Mentiras simples, muito simples e curtas ocuparam o centro dos debates: «o estado é insustentável»; «devemos abdicar da nossa soberania»; «vivemos acima das nossas possibilidades»; «devemos ter a saúde que conseguirmos pagar»; «há professores a mais»; «a reforma do estado vai melhorá-lo». Quem as profere, dia após dia, de canal em canal, de sintonia em sintonia, de cartaz em cartaz é ignorante ou está de má-fé. Haverá alguns ignorantes. A maioria sabe bem o que faz e para onde quer levar-nos. A concretização que decorre dessas mentiras simples é a destruição das vidas de milhões, aqui em Portugal, como em toda a Europa.

São tempos horríveis, em que pessoas com mais de 80 anos são despejadas de suas casas, porque as rendas tinham que ser modernizadas. Em que os estudantes têm de deixar as escolas por não terem dinheiro para pagar a sua educação. Em que, em pleno inverno, bairros são demolidos e as pessoas atiradas à rua, para «embelezar» as cidades. Em que se corta o número de camas disponíveis nos hospitais, apesar de já faltar capacidade de atender doentes. Em que se aumenta o tamanho das turmas nas escolas para «rentabilizar» os poucos professores ainda disponíveis. Em que os medicamentos são racionados e os doentes não podem tratar-se. Em que se salvam os bancos para que estes ponham a economia a funcionar, o que não fazem. Em que pais se suicidam com as suas crianças por estarem desempregados, sem apoios e na iminência de perder as casas. Em que nas noites das cidades centenas de pessoas se amontoam pelo chão, contando apenas com o calor do corpo ao lado para aguentar o frio. Em que se registam ilegalmente imagens das manifestações. Em que se identificam e detêm de forma avulsa pessoas nas ruas. Em que mais de dois terços da população não conseguem pagar as suas contas todos os meses. Em que mais de metade das pessoas que trabalham está desempregada ou é precária. São os tempos da mentira universal, da brutalidade universal e da ascensão de um ódio profundo à comunidade e à sociedade, concretizado pelas troikas internacionais e pelas suas representações permanentes nos países, os governos da austeridade. Não há já dúvida de que o que querem é um novo regime. Um regime de trevas, injustiça e desigualdade. Um regime de exploração, de espoliação e de regressão. O regime da austeridade.

Vivemos, portanto, numa nova época terrível da longa história humana. Mas acreditamos, como Galeano, que este mundo podre, sujo e mentiroso está grávido de outro mundo. E acreditamos nesse outro mundo. Temos de acreditar. Ele não é só possível. Ele está ao alcance das nossas mãos. Está ao alcance da nossa capacidade de articulação, de organização, de empreendermos a tarefa mais importante das nossas vidas: a de resgatarmos um futuro para nós e para a nossa sociedade.

Não pedimos favores à troika ou ao governo. Não lhes pedimos clemência ou piedade, esmola ou razoabilidade. Sabemos não ser essa a sua natureza e não ser essa a relação que um movimento de resistência tem com um movimento de ocupação e saque. Sabemos estar do lado certo pois o mundo que nos propõem, o da miséria e da injustiça para a maioria, com o privilégio e o luxo para uma minoria, é e será sempre errado. Já demos passos sérios para deixar essa situação: já derrubámos monarquia e aristocracia, já abolimos escravidão e servidão, já espezinhámos ditaduras e tornámos a liberdade e a democracia a norma. A história não pode voltar para trás. Não a deixaremos voltar para trás. Temos de continuar a evoluir para sermos mais, melhores, justos, solidários e humanos. Eles são o passado, a paz podre das cortes e dos tribunais inquisitórios, a medicina das sangrias e a censura da liberdade. Lutamos e lutaremos contra este inimigo terrível, de mil caras e mil mentiras. Não lhe vamos dar paz, não vamos aceitar voltar atrás, não vamos vergar ou contemporizar. Não vamos negociar uma paz podre a pagar pelos nossos filhos e netos, por nós mesmos, que trairia a memória daqueles que no passado lutaram para que chegássemos aqui. Vamos atacar estes tempos horríveis com o futuro, a justiça e a democracia no peito e na cabeça.

Uma vez mais nos lançamos nesta luta. Cada vez somos mais e mais organizados. Levamos nas nossas vozes e nas nossas bandeiras o espírito da nossa irreverência, do nosso inconformismo e da nossa coragem. Que se oiça em todo o lado, em todas as ruas de todas as cidades: «O POVO É QUEM MAIS ORDENA». E então será ele mesmo a ordenar.