sábado, 23 de fevereiro de 2013

Texto de Sandra Monteiro

No dia 2 de Março, quando nos encontrarmos na rua, não estaremos apenas a lutar por um futuro melhor. Nesse tempo em que escolhemos estar ali, lado a lado, contrariando a desesperança e a armadilha do «cada um por si», somos já um presente melhor. E isso transforma-nos, logo ali, não se limita a mudar o que o futuro pode ser.

Um presente que esteja mais em sintonia com o que achamos que deve ser uma sociedade decente não existe apenas, é certo, quando nos encontramos na rua. Acontece em todos os actos do nosso quotidiano, por invisíveis que sejam, em que escolhemos ser comunidade e recusamos ser silenciados, espezinhados, postos uns contra os outros pela pequena minoria que enriquece semeando pobreza e apostando no isolamento do desespero. Mas quando nos encontramos na rua, em números que não podem ser ignorados, e nos unimos para tornar possível uma vida que nos entusiasme, estamos também a reconhecer-nos uns aos outros. A mostrar-nos que temos com quem fazer caminho e a construir-nos como sujeitos de uma história que nos torne mais livres, mais iguais. Ganhamos poder, e isso assusta os poderes que hoje nos desprezam e para os quais somos meras variáveis de ajustamento.

Quando nos encontramos, activando a solidariedade e a cooperação, negamos com os nossos corpos e as nossas ideias esse «homem novo» sem saída que a engenharia neoliberal está a tentar criar, pelo mundo fora, desde a década de 1980. Mostramos que a «lei da selva», na versão «crise austeritária» ou noutra qualquer, está a anos-luz da humanidade que queremos e podemos ser. O que vale uma comunidade se não garantir iguais oportunidades para todos — em função das suas necessidades e não dos seus recursos —, activando todas as formas de solidariedade entre gerações e entre territórios? Que sentido tem organizarmo-nos sem ser para limitar e redistribuir a riqueza de modo a que todos tenham uma vida digna? O que é existir, se o tempo de vida não for bem repartido, em cada um de nós, entre o trabalho, o descanso e o lazer? Como podemos deixar de cercear os apetites — devoradores de um futuro comum sustentável — daqueles que se apropriam da riqueza, esmagam o trabalho, devoram recursos, privatizam serviços públicos e bens comuns?

Tudo isto corrói a democracia há décadas. Não é uma engenharia social nova, está apenas a aproveitar a crise — e a contar com a inacção de quem se esgota em tarefas de sobrevivência — para impor um estado de excepção que tudo justifica, da recessão económica à regressão social, laboral e ambiental. Recusar este projecto é defender alternativas às respostas suicidárias que estão a ser dadas à crise e que só a aprofundam, numa espiral recessiva e recessiva Mas é também recusar, em Portugal e na Europa, o projecto neoliberal que nos trouxe até esta crise.

Os neoliberais dizem-nos insistentemente — com a ajuda de uma comunicação social nada plural —, que os seres humanos são atomizados e deslaçados por «natureza». Que só há uma lei nas sociedades, a da selecção «natural» que premeia os comportamentos competitivos, abandonando à sua sorte os mais frágeis. No quadro desta narrativa não há espaço para nada que se assemelhe a solidariedade e confiança, a objectivos de redistribuição da riqueza, combate ao desemprego ou consolidação de um estado social de qualidade e para todos. Nela só há espaço para a construção de liberdade para os mercados — em particular os de capitais —, sem constrangimentos ou regulações que limitem os lucros. Só há lugar para políticas públicas que promovam a sobreexploração do trabalho e dos recursos, para que a riqueza se acumule no topo, e que garantam a captura dos estados, para que capitalistas medíocres possam investir sem risco, à custa do estado.

Esta narrativa neoliberal não é nada «natural». É uma poderosa construção política que tem vindo a edificar-se sob os nossos olhos e à custa das nossas vidas. É a antítese da terra da fraternidade. É a criação de um mundo em que o poder financeiro é quem mais ordena. Para funcionar, precisa que nós, a grande maioria dos cidadãos, acredite que o mundo «é e será assim» e que perca a confiança no seu colega de trabalho, no seu vizinho, no seu concidadão. Precisa que em cada rosto vejamos um inimigo, um competidor, e nunca alguém com quem possamos construir uma sociedade mais igual, mais funcional, mais vantajosa para todos. Para funcionar, esta narrativa precisa que alarguemos essa visão do outro à escala global e que abdiquemos de exigir solidariedade entre classes e entre territórios. Precisa que consideremos não ter discussão nem alternativa a inserção numa arquitectura europeia e numa moeda que todos os dias mostra ser disfuncional e só querer usar o garrote da dívida para impor empobrecimento e subdesenvolvimento a países como Portugal.

Recusar este projecto neoliberal, hoje um embuste e um falhanço clamoroso à vista de todos, e resgatar a sociedade para finalidades solidárias, igualitárias e democráticas, vai exigir a união de muitos esforços e vontades. Porque, pelo menos por agora, a crise está a reforçar a exploração e as desigualdades, fortalecendo a hegemonia neoliberal, e porque reorientar a sociedade para aquelas finalidades também não é uma construção que nasça «naturalmente» do nada. Será sempre uma construção colectiva para a qual teremos de ocupar todos os espaços em que ocorrem escolhas — trabalho, estado, cidadania… —, defendendo sempre o bem comum em detrimento dos interesses privados.

Mas nada disto se faz sem estarmos disponíveis para reconhecer no outro aquele com quem podemos construir um presente e um futuro de dignidade para todos. Quando nos encontrarmos na rua, a 2 de Março, olhemos em volta. Ao que sabe reconhecer em cada rosto um sujeito da mudança que já tarda? Ao que sabe a fraternidade? Que cada um partilhe essa energia para transformar a vida de todos os dias. Que os poderosos de hoje, quaisquer que sejam os seus rostos amanhã, percam a esperança de nos ver calados, explorados, desunidos. É aí que renasce a esperança.