Os velhos que paguem a crise?
Receio que uma das poucas vitórias que este governo venha a averbar no seu currículo póstumo seja a de ter conseguido aumentar o fosso intergeracional no nosso país.
Ano após ano, mês após mês, chegam cortes de milhões atrás de outros cortes, aos quais podem escapar algumas camadas da população, mas nunca a dos reformados. É bom ter presente, por exemplo, que a chamada CES (Contribuição Extraordinária de Solidariedade) só atinge esta categoria de portugueses e é uma verdadeira monstruosidade que nem as mentalidades mais perversas podiam ter imaginado que um dia viesse a existir.
Em paralelo, o primeiro-ministro e os seus ajudantes não se cansam de afirmar que penalizam os reformados para evitarem que os jovens suportem o pagamento de pensões que eles próprios nunca poderão vir a ter. E, ao contrário do que talvez se pudesse esperar mas que se compreende, este argumento vai fazendo o seu caminho e é bem provável que uma vasta camada da população jovem acabe por interiorizar a posição do governo e, mais ou menos secreta ou inconscientemente, esteja mesmo a aprová-la.
Este modo de o poder considerar hoje como parasitas as gerações mais velhas, para além de ser injusta e ilegítima, é uma estranha forma de «recompensar» aqueles que agora estão revoltados (e de que maneira...) porque lhes rasgaram um contrato que tinham feito com um estado ao qual tinham confiado os descontos de toda uma vida e até poupanças individuais. E falo de «recompensa», porque se trata de pessoas que viveram décadas em fascismo, que nasceram e cresceram com 24 horas por dia de censura e de polícia política, homens que na sua esmagadora maioria passaram anos na guerra colonial ou no exílio, mulheres subalternizadas que aguentaram as famílias durante a ausência dos pais, dos maridos e dos filhos, antifascistas perseguidos e torturados pela PIDE e até militares de Abril que nos ajudaram a conquistar a liberdade. E se é verdade que foram muitos os que nunca lutaram contra a ditadura, não deixaram por isso de nela viver mergulhados.
Ceder a esta tentativa de deixar cavar o fosso intergeracional é tanto mais grave quanto a unidade de todos é indispensável para fazer frente a tudo por que estamos a passar. Por isso, os mais velhos, que se indignam e se manifestam contra o desemprego e a precariedade dos mais novos, contra a emigração inevitável de muitos e tudo o resto que é conhecido, contam agora com a tal geração mais preparada de sempre e fazem notar que ela é também a mais privilegiada do último século, precisamente porque nasceu ou cresceu já em liberdade — bem que herdou e que não tem preço.
E dizem aos mais jovens que continuarão a estar com eles em todas as frentes, que irão com eles encher as ruas no dia 2 de Março, mas que sabem que é às novas gerações que estão a entregar o testemunho, nesta triste corrida de estafetas de um país ainda formalmente democrático mas já socialmente totalitário. E que os esperam lutas que poderão vir a ser muito duras, mas que lhes compete, agora prioritariamente, encontrar as formas de combate para o momento que passa.
Finalmente: por muito importante e grande que seja a próxima manifestação (e vai ser), é preciso que seja vivida por todos nós como (mais um) ponto de partida e não de chegada. Um arranque para o dia seguinte, um «3 de Março» que não será de festa mas de resistência, passiva e activa, para que não se perca definitivamente o que foi conquistado numa quinta-feira de Abril. Serão os mais novos a liderar as próximas lutas que não serão nada fáceis, como as nossas não o foram. Não se iludam. Nem nos desiludam.
Receio que uma das poucas vitórias que este governo venha a averbar no seu currículo póstumo seja a de ter conseguido aumentar o fosso intergeracional no nosso país.
Ano após ano, mês após mês, chegam cortes de milhões atrás de outros cortes, aos quais podem escapar algumas camadas da população, mas nunca a dos reformados. É bom ter presente, por exemplo, que a chamada CES (Contribuição Extraordinária de Solidariedade) só atinge esta categoria de portugueses e é uma verdadeira monstruosidade que nem as mentalidades mais perversas podiam ter imaginado que um dia viesse a existir.
Em paralelo, o primeiro-ministro e os seus ajudantes não se cansam de afirmar que penalizam os reformados para evitarem que os jovens suportem o pagamento de pensões que eles próprios nunca poderão vir a ter. E, ao contrário do que talvez se pudesse esperar mas que se compreende, este argumento vai fazendo o seu caminho e é bem provável que uma vasta camada da população jovem acabe por interiorizar a posição do governo e, mais ou menos secreta ou inconscientemente, esteja mesmo a aprová-la.
Este modo de o poder considerar hoje como parasitas as gerações mais velhas, para além de ser injusta e ilegítima, é uma estranha forma de «recompensar» aqueles que agora estão revoltados (e de que maneira...) porque lhes rasgaram um contrato que tinham feito com um estado ao qual tinham confiado os descontos de toda uma vida e até poupanças individuais. E falo de «recompensa», porque se trata de pessoas que viveram décadas em fascismo, que nasceram e cresceram com 24 horas por dia de censura e de polícia política, homens que na sua esmagadora maioria passaram anos na guerra colonial ou no exílio, mulheres subalternizadas que aguentaram as famílias durante a ausência dos pais, dos maridos e dos filhos, antifascistas perseguidos e torturados pela PIDE e até militares de Abril que nos ajudaram a conquistar a liberdade. E se é verdade que foram muitos os que nunca lutaram contra a ditadura, não deixaram por isso de nela viver mergulhados.
Ceder a esta tentativa de deixar cavar o fosso intergeracional é tanto mais grave quanto a unidade de todos é indispensável para fazer frente a tudo por que estamos a passar. Por isso, os mais velhos, que se indignam e se manifestam contra o desemprego e a precariedade dos mais novos, contra a emigração inevitável de muitos e tudo o resto que é conhecido, contam agora com a tal geração mais preparada de sempre e fazem notar que ela é também a mais privilegiada do último século, precisamente porque nasceu ou cresceu já em liberdade — bem que herdou e que não tem preço.
E dizem aos mais jovens que continuarão a estar com eles em todas as frentes, que irão com eles encher as ruas no dia 2 de Março, mas que sabem que é às novas gerações que estão a entregar o testemunho, nesta triste corrida de estafetas de um país ainda formalmente democrático mas já socialmente totalitário. E que os esperam lutas que poderão vir a ser muito duras, mas que lhes compete, agora prioritariamente, encontrar as formas de combate para o momento que passa.
Finalmente: por muito importante e grande que seja a próxima manifestação (e vai ser), é preciso que seja vivida por todos nós como (mais um) ponto de partida e não de chegada. Um arranque para o dia seguinte, um «3 de Março» que não será de festa mas de resistência, passiva e activa, para que não se perca definitivamente o que foi conquistado numa quinta-feira de Abril. Serão os mais novos a liderar as próximas lutas que não serão nada fáceis, como as nossas não o foram. Não se iludam. Nem nos desiludam.