Vou sair à rua e irei contigo, com quem sempre tenho ido, mesmo que não vá mais ninguém.
Contigo também que, da última vez, sem saberes bem o que te empurrava porta fora, sem saberes bem que besta é esta, que nome lhe dar, essa mesmo que te vem sugando a vida, palmando a vontade, matando o desejo, comendo o pão e agora até a água te cobiça, foste à rua para te juntares. Para saberes afinal como é essa coisa de nos juntarmos a outras mulheres e a outros homens. Para saberes se o teu grito pode ou não ser o grito de outros.
Sairei à rua. Sairemos à rua.
Nos primeiros instantes seremos poucos. O Marquês será ainda rotunda quando olharmos os primeiros rostos. Meia dúzia de pessoas, ali de volta dum cartaz que estão a pintar, acenam a um carro que apitou enquanto gritam o que escreveram: «JAMAIS SEREMOS VENCIDOS!» Em volta não param de chegar. Vêm em grupos de dois, de três, muitos pela primeira vez como tu vieste também: sós. Uns com mochila às costas. Outros com os filhos. Tiveram de cortar o trânsito e agora ocupas a estrada, tu e as centenas que já não consegues contar. Já não cabemos nos passeios, grita alguém que não vês. Queres dar uma volta e subir a um banco ou a um poste, mas agora já não interessa, porque são muitos e vêm de todos os lados, porque ficas com medo de perder o grupo. «JAMAIS SEREMOS VENCIDOS». Mas entretanto vês outros com um cartaz a dizer «O POVO É QUEM MAIS ORDENA» e de novo perdes o medo. Por todo o lado há pontos de exclamação e desistes da investida, porque já não queres saber quantos são, contar às vezes é estúpido, pensas agora que os rostos estão mais perto, quase colados.
É Março, mas a luz faz lembrar a de Setembro, naquele dia, lembras-te? Sim, eu sei que escolheste ficar em casa nesse dia e ficaste a pensar «por que diabo é que não fui», mas não faz mal, porque eu sabia e foi como se lá estivesses estado e o ar estava febril antes de arrancarmos e depois éramos tantos que ninguém mais parecia saber onde tudo tinha começado. Então percebes que estás em Março, que afinal não sentes medo nenhum e que aquelas pessoas estão ali, porque só podem querer as coisas que tu queres e que portanto algum sentimento de justiça as move a elas também. E claro, claro que sim, é evidente agora o que logo nos primeiros instantes tinhas avistado nas expressões de todos os rostos com que te foste cruzando e te parecera, à chegada ao Marquês, novo e inesperado: os homens e mulheres desta terra conhecem a justiça e hão-de fazer ouvir a suas vozes. Desta terra que a cada um de nós pertence e que agora, a pretexto dum mercado onde nunca entraste, onde não tens banca, não podes vender nem comprar e muito menos discutir os preços, é queimada. Queimam esta terra como se fosse a terra deles, queimam a terra e dizem que é assim, que tem de ser, que é para o teu bem e para o bem do teu pai e da reforma que ele não vai ter, porque lha vão tirar antes de ele lá chegar e que há é que agradecer porque lá se vai mantendo o emprego, mas tu vês os outros à tua volta e vês a tua irmã mais velha que queria tanto ter um filho, mas aguarda colocação talvez para o ano.
E porque hoje, 2 de Março, tanto nos faz o dia, tanto nos faz a cidade, porque somos todos do Porto e de Évora e também de Lisboa e de Grândola e somos de Fortaleza e de Londres e de Rabat e Boston e somos muitos, quase todos. Agora que erguemos a cabeça e vemos a dignidade na cara de cada um (essa que parecia termos esquecido), agora que deixámos todas as máscaras em casa e parece assim que podemos ter esperança, porque eu vejo, eu juro que vejo que juntos somos uma força enorme e que não tenho de ter medo. Quando chegar a casa será tarde e estarei muito cansado, mas ainda vou ligar a televisão e verei, verei que lá também estiveram na rua, em todas as cidades, noutros países, nem vou acreditar no que vejo, mas saberei, porque também lá estive e vi. Vou ver as imagens na televisão e surpreender-me-ei por serem insuficientes as imagens para contar como tinha sido, e agora eu sei, eu sei que jamais seremos vencidos. Sei , porque lá estive, que JAMAIS SEREMOS VENCIDOS!
Depois a televisão será desligada. No outro dia sairemos de novo. Iremos de novo para a fábrica, para a escola, rumaremos ao centro de emprego, ao escritório. Conduziremos de novo os táxis e os autocarros e os comboios. Sentar-nos-emos em bancos de jardim, no bar do hospital. Iremos a consultas e a reuniões que já estavam marcadas, mas nunca mais adiaremos, um dia que seja, a saída para a rua. Porque agora já sabes e voltarás as vezes que forem precisas. Porque agora já sabes e viste com os teus próprios olhos que «dentro de ti ó cidade, O POVO É QUEM MAIS ORDENA!»
Contigo também que, da última vez, sem saberes bem o que te empurrava porta fora, sem saberes bem que besta é esta, que nome lhe dar, essa mesmo que te vem sugando a vida, palmando a vontade, matando o desejo, comendo o pão e agora até a água te cobiça, foste à rua para te juntares. Para saberes afinal como é essa coisa de nos juntarmos a outras mulheres e a outros homens. Para saberes se o teu grito pode ou não ser o grito de outros.
Sairei à rua. Sairemos à rua.
Nos primeiros instantes seremos poucos. O Marquês será ainda rotunda quando olharmos os primeiros rostos. Meia dúzia de pessoas, ali de volta dum cartaz que estão a pintar, acenam a um carro que apitou enquanto gritam o que escreveram: «JAMAIS SEREMOS VENCIDOS!» Em volta não param de chegar. Vêm em grupos de dois, de três, muitos pela primeira vez como tu vieste também: sós. Uns com mochila às costas. Outros com os filhos. Tiveram de cortar o trânsito e agora ocupas a estrada, tu e as centenas que já não consegues contar. Já não cabemos nos passeios, grita alguém que não vês. Queres dar uma volta e subir a um banco ou a um poste, mas agora já não interessa, porque são muitos e vêm de todos os lados, porque ficas com medo de perder o grupo. «JAMAIS SEREMOS VENCIDOS». Mas entretanto vês outros com um cartaz a dizer «O POVO É QUEM MAIS ORDENA» e de novo perdes o medo. Por todo o lado há pontos de exclamação e desistes da investida, porque já não queres saber quantos são, contar às vezes é estúpido, pensas agora que os rostos estão mais perto, quase colados.
É Março, mas a luz faz lembrar a de Setembro, naquele dia, lembras-te? Sim, eu sei que escolheste ficar em casa nesse dia e ficaste a pensar «por que diabo é que não fui», mas não faz mal, porque eu sabia e foi como se lá estivesses estado e o ar estava febril antes de arrancarmos e depois éramos tantos que ninguém mais parecia saber onde tudo tinha começado. Então percebes que estás em Março, que afinal não sentes medo nenhum e que aquelas pessoas estão ali, porque só podem querer as coisas que tu queres e que portanto algum sentimento de justiça as move a elas também. E claro, claro que sim, é evidente agora o que logo nos primeiros instantes tinhas avistado nas expressões de todos os rostos com que te foste cruzando e te parecera, à chegada ao Marquês, novo e inesperado: os homens e mulheres desta terra conhecem a justiça e hão-de fazer ouvir a suas vozes. Desta terra que a cada um de nós pertence e que agora, a pretexto dum mercado onde nunca entraste, onde não tens banca, não podes vender nem comprar e muito menos discutir os preços, é queimada. Queimam esta terra como se fosse a terra deles, queimam a terra e dizem que é assim, que tem de ser, que é para o teu bem e para o bem do teu pai e da reforma que ele não vai ter, porque lha vão tirar antes de ele lá chegar e que há é que agradecer porque lá se vai mantendo o emprego, mas tu vês os outros à tua volta e vês a tua irmã mais velha que queria tanto ter um filho, mas aguarda colocação talvez para o ano.
E porque hoje, 2 de Março, tanto nos faz o dia, tanto nos faz a cidade, porque somos todos do Porto e de Évora e também de Lisboa e de Grândola e somos de Fortaleza e de Londres e de Rabat e Boston e somos muitos, quase todos. Agora que erguemos a cabeça e vemos a dignidade na cara de cada um (essa que parecia termos esquecido), agora que deixámos todas as máscaras em casa e parece assim que podemos ter esperança, porque eu vejo, eu juro que vejo que juntos somos uma força enorme e que não tenho de ter medo. Quando chegar a casa será tarde e estarei muito cansado, mas ainda vou ligar a televisão e verei, verei que lá também estiveram na rua, em todas as cidades, noutros países, nem vou acreditar no que vejo, mas saberei, porque também lá estive e vi. Vou ver as imagens na televisão e surpreender-me-ei por serem insuficientes as imagens para contar como tinha sido, e agora eu sei, eu sei que jamais seremos vencidos. Sei , porque lá estive, que JAMAIS SEREMOS VENCIDOS!
Depois a televisão será desligada. No outro dia sairemos de novo. Iremos de novo para a fábrica, para a escola, rumaremos ao centro de emprego, ao escritório. Conduziremos de novo os táxis e os autocarros e os comboios. Sentar-nos-emos em bancos de jardim, no bar do hospital. Iremos a consultas e a reuniões que já estavam marcadas, mas nunca mais adiaremos, um dia que seja, a saída para a rua. Porque agora já sabes e voltarás as vezes que forem precisas. Porque agora já sabes e viste com os teus próprios olhos que «dentro de ti ó cidade, O POVO É QUEM MAIS ORDENA!»