quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Texto de Paulo Raposo


Nada é impossível de mudar!

«Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.»

Estas são palavras do dramaturgo alemão Bertold Brecht. Vivia então a Europa tempos difíceis. Tempos igualmente difíceis como os que vivemos agora. Mas, como antes, como sempre, não necessariamente imutáveis.

Muito do que consideramos, sentimos ou vivemos como coisa natural não deve portanto parecer natural. Como antropólogo, aprendi a pensar que para entendermos melhor o mundo que nos rodeia devemos justamente desnaturalizar o que tomamos como natural, óbvio, habitual. Naturalizar significa atribuir qualidades essenciais ao que na verdade é fruto de actividades humanas, pelo contrário, desnaturalizar significa explicitar a artificialidade de construções sociais e culturais concebidas como naturais.

Esta é uma questão de natureza analítica para os cientistas sociais, mas é também uma questão política para todos nós. Uma questão política, porque implica procurar situar e explicitar os processos através dos quais tais naturalizações são construídas em sociedade. E muitas das naturalizações, como as referentes à diferença entre sexos, entre classes, entre culturas, etc. que se aceitam como naturais, são precisamente difundidas, ensinadas, transmitidas para produzir e sustentar certas desigualdades, que por sua vez também se tornam naturalizadas. Por isso pensamos que as pessoas são consideradas «normais» quando são consensualmente intelígiveis os seus modos de ser, os seus actos e discursos, o que quer dizer basicamente que consideramos esses modos de ser, actos e discursos como naturais e naturalmente adaptados ao que aprendemos e a que nos habituamos. Mas se queremos ser justos e profundos na forma de entender o mundo, então teremos de aceitar o exercício proposto por Brecht, todos os dias, em cada instante da nossa vida. E teremos ainda de procurar agir em conformidade: nada deve parecer natural, tudo é fruto de um contexto e de processos de construção particulares.

Quando após a madrugada de 24 para 25 de Abril de 1974 se abriu um imenso rio de possibilidades para este pequeno país, nada foi natural. Nada era aliás natural antes, no Fascismo, mas sim fruto de modelos e de concepções do mundo que procuravam naturalizar a pobreza (e a riqueza), o analfabetismo (e a literacia elitista), os brandos costumes (e o sacrifício colonial), o moralismo maniqueísta (e a perseguição à luta política), a autoridade do triângulo Deus/Pátria/Família (e a censura e repressão). E foi porque várias gerações de resistentes acreditaram que nada era natural, que o imenso rio de possibilidades se franqueou e contagiou um povo inteiro. Porque justamente nada foi tomado como inevitável e impossível de mudança. Mas obviamente nada tem sido natural em Democracia, nestes últimos quase 40 anos. Sou daqueles que herdaram esta conquista de possibilidades, a minha vida desenrolou-se fundamentalmente nestes anos de Democracia, não precisei de lutar para a conquistar, mas isso não a torna um coisa natural, um hábito.

Vivemos tempos difíceis mas não naturais, tempos que me fazem pensar agora no meu filho e na filha que se avizinha, provavelmente com a mesma preocupação e angústia com que meus avós e meus pais pensaram nos seus filhos e filhas. E por isso, não entendo como natural que portugueses, ou gregos, ou espanhóis, ou um qualquer povo, tenham de aceitar naturalmente a sua condição e o seu destino.

A crise e a austeridade não são naturais, a dívida e o empobrecimento não são naturais, o Memorando da Troika e os interesses financeiros e especuladores não são naturais, as políticas e os modelos governamentais não são naturais, o capitalismo sem freio não é natural, a destruição do bem comum e do planeta não é natural. Nada, em tempo de confusão sangrenta e desorganização organizada deve ser pensado como natural. Porque tudo isto é fruto de opções e decisões de alguns, de arbitrariedade consciente e de humanidade desumanizada de personagens que, como outrora, procuram a todo o custo, com meios poderosos e poder desmedido, naturalizar a miserável existência, o empobrecimento e a perda de direitos da larga maioria (os tais 99 %) e a inevitabilidade de políticas que servem apenas um pequena parte dos habitantes deste planeta.

Esta Democracia em que vivemos, refém de interesses económicos e especulativos, confeccionada e gerida por muito poucos e sobretudo por quem não nos representa, que limita a participação e a voz da cidadania e a multiplicidade de modelos e formas de organização social, tem de ser desnaturalizada. Tem de ser revelada na sua artificialidade.

E é por isso que a 2 de Março, como em tantas outras vezes nestes últimos anos, sairei à rua, ao lado de todos aqueles e de todas aquelas que entendem que nada é natural, e sobretudo que percebam que nada é impossível de mudar.