Nada
é impossível de mudar!
«Suplicamos expressamente: não aceiteis
o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem
sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de
humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer
impossível de mudar.»
Estas
são palavras do dramaturgo alemão Bertold Brecht. Vivia então a
Europa tempos difíceis. Tempos igualmente difíceis como os que
vivemos agora. Mas, como antes, como sempre, não necessariamente
imutáveis.
Muito
do que consideramos, sentimos ou vivemos como coisa natural não deve
portanto parecer natural. Como antropólogo, aprendi a pensar que
para entendermos melhor o mundo que nos rodeia devemos justamente
desnaturalizar o que tomamos como natural, óbvio, habitual.
Naturalizar significa atribuir qualidades essenciais ao que na
verdade é fruto de actividades humanas, pelo contrário,
desnaturalizar significa explicitar a artificialidade de construções
sociais e culturais concebidas como naturais.
Esta
é uma questão de natureza analítica para os cientistas sociais,
mas é também uma questão política para todos nós. Uma questão
política, porque implica procurar situar e explicitar os processos
através dos quais tais naturalizações são construídas em
sociedade. E muitas das naturalizações, como as referentes à
diferença entre sexos, entre classes, entre culturas, etc. que se
aceitam como naturais, são precisamente difundidas, ensinadas,
transmitidas para produzir e sustentar certas desigualdades, que por
sua vez também se tornam naturalizadas. Por isso pensamos que as
pessoas são consideradas «normais» quando são consensualmente
intelígiveis os seus modos de ser, os seus actos e discursos, o que
quer dizer basicamente que consideramos esses modos de ser, actos e
discursos como naturais e naturalmente adaptados ao que aprendemos e
a que nos habituamos. Mas se queremos ser justos e profundos na forma
de entender o mundo, então teremos de aceitar o exercício proposto
por Brecht, todos os dias, em cada instante da nossa vida. E teremos
ainda de procurar agir em conformidade: nada deve parecer natural,
tudo é fruto de um contexto e de processos de construção
particulares.
Quando
após a madrugada de 24 para 25 de Abril de 1974 se abriu um imenso
rio de possibilidades para este pequeno país, nada foi natural. Nada
era aliás natural antes, no Fascismo, mas sim fruto de modelos e de
concepções do mundo que procuravam naturalizar a pobreza (e a
riqueza), o analfabetismo (e a literacia elitista), os brandos
costumes (e o sacrifício colonial), o moralismo maniqueísta (e a
perseguição à luta política), a autoridade do triângulo
Deus/Pátria/Família (e a censura e repressão). E foi porque várias
gerações de resistentes acreditaram que nada era natural, que o
imenso rio de possibilidades se franqueou e contagiou um povo
inteiro. Porque justamente nada foi tomado como inevitável e
impossível de mudança. Mas obviamente nada tem sido natural em
Democracia, nestes últimos quase 40 anos. Sou daqueles que herdaram
esta conquista de possibilidades, a minha vida desenrolou-se
fundamentalmente nestes anos de Democracia, não precisei de lutar
para a conquistar, mas isso não a torna um coisa natural, um hábito.
Vivemos
tempos difíceis mas não naturais, tempos que me fazem pensar agora
no meu filho e na filha que se avizinha, provavelmente com a mesma
preocupação e angústia com que meus avós e meus pais pensaram nos
seus filhos e filhas. E por isso, não entendo como natural que
portugueses, ou gregos, ou espanhóis, ou um qualquer povo, tenham de
aceitar naturalmente a sua condição e o seu destino.
A
crise e a austeridade não são naturais, a dívida e o
empobrecimento não são naturais, o Memorando da Troika e os
interesses financeiros e especuladores não são naturais, as
políticas e os modelos governamentais não são naturais, o
capitalismo sem freio não é natural, a destruição do bem comum e
do planeta não é natural. Nada, em tempo de confusão
sangrenta e
desorganização
organizada deve ser
pensado como natural. Porque tudo isto é fruto de opções e
decisões de alguns, de
arbitrariedade consciente e de humanidade desumanizada
de personagens que, como outrora, procuram a todo o custo, com meios
poderosos e poder desmedido, naturalizar a miserável existência, o
empobrecimento e a perda de direitos da larga maioria (os tais 99 %)
e a inevitabilidade de políticas que servem apenas um pequena parte
dos habitantes deste planeta.
Esta
Democracia em que vivemos, refém de interesses económicos e
especulativos, confeccionada e gerida por muito poucos e sobretudo
por quem não nos representa, que limita a participação e a voz da
cidadania e a multiplicidade de modelos e formas de organização
social, tem de ser desnaturalizada. Tem de ser revelada na sua
artificialidade.