quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Texto de Maria Luísa Cabral


EU VOU À MANIFESTAÇÃO 2M

Aposentei-me há ano e meio, depois de quarenta anos de carreira contributiva, com a idade prevista na lei e, portanto, sem penalizações. Planeei a minha reforma sabendo que poderia gozar uns anos com alguma tranquilidade, confiante no contrato social estabelecido entre mim e o estado quarenta anos antes e confiando na assistência na saúde através da ADSE ou do SNS. Apenas vinte meses volvidos sobre a data da aposentação, a justa recompensa por uma vida de trabalho esvaiu-se. Fazem-me sentir culpada porque, diz o governo, no passado gastei (ou contribui para isso) mais do que ganhei; porque estou a receber uma reforma para a qual não contribui; porque me habituei a viver acima das minhas possibilidades. Ora eu nunca gastei mais do que tinha (em bom português, nunca dei um passo maior que a perna); eu sempre descontei o que o estado estipulou (quando entrei para o quadro da Administração Central do Estado a única coisa que me pediram foi que eu jurasse que não era comunista nem desenvolveria nenhuma acção contra a segurança do estado), nunca me perguntaram se eu queria descontar mais ou menos; como não contraí dívidas nem colaborei para o crédito mal parado, não notei ter vivido acima das minhas possibilidades. Habituei-me a fazer escolhas, levei sempre tudo bem equilibrado para não viver, efectivamente, acima das minhas possibilidades. De acordo com o que ganhava, gozei a vida, sim. Não me arrependo, nem carrego culpas mal disfarçadas, não tenho nem de pedir desculpa nem ser castigada.

De repente, um tsunami. Somos culpados, sim. Temos de entrar na ordem (deles). Temos de fazer mea culpa, andar cabisbaixos, humilhados e sem esperança. Há no ar um certo tom justiceiro. Este governo acha que tem autoridade para nos punir porque ganhou as eleições. O que nunca ninguém lhe explicou é que ganhar eleições não é um cartão em branco para justificar o esbulho a que assistimos nem para a destruição do estado social. Os aposentados, pensionistas e reformados constituem um alvo preferencial sobre o qual se carrega facilmente. Com as medidas tomadas e as que espreitam apenas a aguardar uma desatenção da nossa parte, podemos afirmar que a carga sobre os reformados é particularmente injusta e dolorosa. Os aposentados são, na generalidade, uma faixa da sociedade que perdeu capacidade de mobilização e de reivindicação, está fragilizada e desmoralizada. No final da vida, resta-lhe um trilho minado a percorrer. Eu que escrevo estas linhas e vocês que as lêem teríamos vergonha de atirar os nossos velhos para uma situação destas, mas este governo não tem. Este governo sente-se iluminado. O governo sabe exactamente onde está o bem e o mal. O que diz, está dito. Não há contraditório. Pior, não há pudor. Nem nas políticas que executa, nem nos alvos que escolhe, nem nos executores que faz avançar qual pelotão. Tenta virar-nos uns contra os outros, jogando com os diferentes valores de reforma entre os da função pública e os do sector privado; tenta semear o azedume e a desconfiança repetindo que uns gozavam de um sistema de saúde melhor que os outros; insiste em afirmar que os funcionários públicos eram, e são, privilegiados relativamente aos do privado. Pior, faz crer que as nossas pensões são uma despesa e, portanto, um favor. É preciso de facto muita desfaçatez. Todos estes argumentos são mesquinhos, distorcem a realidade, generalizam e desvirtuam. Tudo em nome da reforma do estado. Mas qual reforma? O que está em marcha não é uma reforma; a reforma faz-se discutindo o que é necessário manter ou eliminar e depois, então, quantifica-se. É inaceitável o pensamento de que apertando e esmagando se conseguirá arrumar a sociedade portuguesa, limpando-a ao ponto de ter apenas os que não pesam. Esta é uma abordagem muito perigosa, percebe-se mal como estamos a entrar e desconhecemos completamente como vamos sair. Por mim, recuso-a liminarmente.

Não podemos embarcar neste jogo baixo. Primeiro porque somos todos trabalhadores; segundo porque todos sofremos este sistema corporativo a ver quem mais água ao seu moinho leva. Nós queremos soluções que atendam à nossa dignidade de pessoas e cidadãos e se a situação é catastrófica fica a dever-se a sucessivos governos e políticas que pouco atenderam aos valores humanos, porque o lucro foi sempre mais importante, porque nunca se pensou verdadeiramente num sistema económico que servisse os interesses gerais do país e da população, no presente e no futuro. Entre números e estatísticas, a nossa realidade saltou de secretária em secretária, deu azo a muitos estudos, a muitos gabinetes, alimentou muita teoria. Durante anos, assistimos à execução de políticas que favoreciam sempre os mesmos; aos poucos, a direita ganhou terreno, tornou-se confiante e atrevida; todos os dias ouvimos o impensável sobre os jovens, sobre os desempregados, sobre os aposentados. É preciso dizer basta; temos de inverter esta marcha que nos sufoca. Há valores que se prendem com a dignidade, com a solidariedade, com a fraternidade e pelos quais vale a pena lutar. Nós, aposentados como eu, temos um problema, sim; mas eu não vou à manifestação de 2 de Março por causa do meu problema em especial. Eu vou à manifestação de 2 de Março porque me é insuportável a situação dos meus compatriotas que não têm emprego; que emigram; que recebem pensões de miséria; que estão suspensos por uma lei das rendas vil; que não conseguem pagar a farmácia ou as taxas moderadoras do SNS. Eu vou à manifestação de 2 Março porque eu não quero ser governada por estrangeiros; porque eu quero participar no destino da minha terra; porque penso que é tempo de correr com este governo incompetente, insensível e cruel que nos empurra para o precipício. Eu vou à manifestação de 2 Março porque quero estar na rua e na companhia de outros portugueses como eu. Eu vou à manifestação de 2 de Março porque vou sentir que O POVO É QUEM MAIS ORDENA.